sexta-feira, 23 de abril de 2010


A Tinta e o Sangue
Uma interpretação do desenho “MILLOR desenha a língua”

Toda obra de arte envolve múltiplas possibilidades de sentido. Se assim não for, arte não é. A primeira impressão que tenho do desenho em foco é a de uma caneta tinteiro que sai do subterrâneo, perfura a crosta terrestre, deixando escondidas embaixo as raízes que a sustentam, como se árvore fosse.
Quero propor outro olhar. A caneta continua lá. É uma caneta tinteiro e não uma esferográfica moderna? Por quê? Possivelmente porque a primeira se renova a cada nova carga, enquanto a segunda é estanque, descartável... Finda-se a tinta e joga-se fora! Retratar a língua através de uma esferográfica enfatizaria uma visão muito utilitarista. A caneta-tinteiro traz um ar mais nobre (não há aqui qualquer ênfase em língua culta) no sentido de enxergá-la como valiosa, bela, que precisa ser tratada com cuidado, quem sabe com amor...  
A parte da caneta que, efetivamente escreve, lembra uma cabeça. Não se precisa gênero. Não se precisa raça. Poderia até ser uma cabeça alienígena. Mas é uma cabeça. E é através dela que a tinta fluirá e deixará marcas (textos, gravuras, desenhos, etc.) no mundo. Inscreverá e escreverá com a cor da tinta que for alimentada.
Prefiro enxergar nas raízes, veias. E na seiva, sangue. O sangue é quente. O sangue é vida. O sangue irriga o cérebro e o faz respirar, viver, pensar. O sangue é a tinta. A tinta é composta pelas ideologias, visões de mundo, contexto histórico social, saber enciclopédico, etc., que, como glóbulos brancos e vermelhos, plaquetas, vitaminas, sais minerais, água e demais componentes do sangue, lá estão representados nas palavras. O desenho não comporta toda a rede de veias e artérias. Elas estão cortadas. Limitadas pelo escopo do quadro, porém, claramente parecem continuar. E se olharmos bem, encontraremos além do desenho, uma infinidade de outras palavras no silêncio...
Voltemos à caneta. Ela perfura a realidade do mundo. Ao seu redor, uma paisagem árida, desértica, esperando que algo ou alguém lhe traga vida, sentido. No canto superior direito está um sol de criança, vermelho como sangue, mas com um enigmático cifrão negro no centro. A origem deste símbolo universal do dinheiro mistura a história da conquista árabe na Europa (representada pela linha sinuosa em forma de “S” que simboliza o caminho sinuoso da conquista) com mitologia a grega (os dois traços verticais que representam as colunas de Hércules, ícone de poder, força e perseverança).  A luz proveniente do sol permite que a caneta enxergue. É bom que seja um sol de criança. A criança não está pronta. Ela cresce. Gosta de aprender, mudar, brincar... Vislumbra-se aí a oportunidade criativa. O mundo só tem sentido pela linguagem. É a língua que diz o mundo. Contudo, conquista, poder, força e perseverança são componentes desta arena de lutas que é o discurso que molda o mundo à sua volta. E o mundo está lá. A caneta está lá. Sua  “face” está lá. Parece ansiosa para dar vida ao deserto... Parece esperar... O que? Talvez a minha mão... Ou será a sua?! Uma mão que, quando segurar a caneta, terá um oceano de possibilidades. É nesse momento que tinta e sangue tornam-se um só.

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